Reminiscências de Vitinho das Neves Brasil: a bola da vez!

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Brasil: ponta de lança no setor de serviços?

Otimistas de plantão não se cansam da cantilena de que o Brasil é a bola da vez. Diante do esfacelamento do cenário econômico mundial, desde a crise que jogou na lama a confiança cega na mão invisível do Dr. Smith, o País fortaleceu suas reservas internacionais e aprimorou os fundamentos da economia. Ao mesmo tempo, continuou gerando empregos. “O Brasil está bombando” tornou-se um mantra mais poderoso que o refrão de My Sweet Lord. Há quem discorde. Segundo a turma do “deixa dilson, Bresser”, as taxas de crescimento dos últimos dois anos flagraram o gigante desfilando com algo “meia bomba” nas mãos.

Vital das Neves não joga nesse time. É desses nós cegos que amam entoar “O que é, O que é”, de Gonzaguinha, nas mesas de bar, e se emocionam assistindo aos jogos do Boca Junior em nome da Cooperação Sul-Sul. Ávido por um bom embate político, Vitinho sonhava com a hora de voltar à Brasília e esfregar na cara de seus amigos de infância – hoje todos demistas – um fato: o Brasil não só é a bola da vez, como também a ponta de lança do setor de serviços.

No início de abril, Vitinho finalmente desembarcou na capital, onde cedeu aos apelos de sua disposição insaciável para ingerir generosas porções de sebo de carne. Ele aprendera a lição com o russo Tulik: se não entupir, imediatamente, ao menos duas artérias e não gerar mornas flatulências, não se pode afirmar com segurança que a iguaria – no caso, sebo de paca – é saborosa.

Das Neves decidiu começar pelo Cachorro que Rosna – templo da alta gastronomia brasiliense – e saborear um espetinho de tatu petrificado. Convencido pelo irmão, o ortodoxo Flavinho Ferreira, acabou numa das novas hamburguerias da cidade, a Miolo Mole, no Pier 21.

Alertado por Ferreira, Vitinho não deu muita bola aos boatos sobre a qualidade do atendimento nos bares e restaurantes de Brasília.

“As coisas mudaram muito, Vitinho. Aqui, empresários inauguram restaurantes com a mesma devoção com que atiram pela latrina a já pífia qualidade do serviço.”

“Falou bonito! Aprendeste a ler, Flavinho! Fico feliz. Mas isso é balela, rapaz. Fui criado nessa cidade. Aqui, sempre sou tratado como se estivesse em casa.”

Na verdade, Vitinho confiava nos dividendos de seu trabalho sobre o pensador Mussum, cuja abrangência sócio-política rendeu elogios de discípulos do saudoso Celso Furtado, como Maria da Conceição Tavares. Isso atraiu alguma fama e certa inveja entre pelegos do sindicalismo local.

“Além disso”, prosseguiu, “o Brasil é referência no cenário internacional. Vamos mostrar como receber esses gringos na Copa de 2014!”.

Flavinho, que vinha desenvolvendo uma personalidade cicloide semelhante à do proprietário do maravilhoso Britan Bar, o pé sujo Bar do Zé, no Rio de Janeiro (tema de futuro texto neste espaço), não titubeou:

“Isso não tem nada a ver com alfabetização, criatura abjeta. Aponto um fato. E não me recordo de nossa mãe escarrando no nosso misto quente. Quanto ao Brasil, você está febril. Até meu cachorro discorda da condução da política econômica. O Brasil está travado! O ano que vem será um desastre!”, berrou Flavinho, a plenos pulmões, atraindo olhares na porta da lanchonete.

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Em Brasília, a gentileza no atendimento vem em primeiro lugar

Das Neves sabia que a paciência de Ferreira era mais frágil que o novo técnico do Flamengo. Percebeu também que a exposição, pelo irmão, de suas tendências desenvolvimentistas, o deixaria vulnerável a ataques de radicais neoliberais. Eles estavam em pleno Pier 21, um território hostil para Vitinho. Por isso, fingiu que não entendeu e deu de ombros, rezando para que Flavinho não irrompesse em um ataque de fúria.

Na hamburgueria, o garçom chegou e surpreendeu-se com a rapidez de Flavinho Ferreira ao fazer o pedido, com orientações específicas:

“Dois hambúrgueres de tripa de mico, por favor. No meu caso, apenas gostaria de pedir que a maionese não venha no sanduíche. Acrescente um ovo encharcado de óleo, por obséquio, e traga dois palitos para que eu possa higienizar meus dentes com dignidade.”

Passados 40 minutos, o garçom chegou com os sanduíches. Em um terceiro prato, havia um ovo mergulhado em uma poça de gordura.

“O que é isso?”, perguntou um impaciente Flavinho.

“Me parece um ovo, encharcado em banha de porco, como o senhor pediu.”

“Mas não pedi o ovo fora do sanduíche.”

“Pediu sim, senhor. Está aqui, anotado…”

Flavinho acionou o triturador de ouvidos, ou seja, a própria matraca:

“Meu jovem incauto, eu pedi que a maionese viesse à parte, o que não aconteceu. Aí, me deparo com esse ovo solitário. Será que deixaram o ovo solto na esperança de que irá metamorfosear-se numa galinha para ajudar no atendimento?”

“Olha, seu malcriado…”, balbuciou o garçom, cabisbaixo, a voz trêmula.

Sem aviso prévio, o surto psicótico deu sinais de arrefecimento. Flavinho se acalmou:

“Por favor, o senhor poderia colocar de volta esse ovo no sanduíche e trazer a maionese fora dele?”

“O senhor quer uma porção de maionese?”

“Por obséquio.”

Vitinho nem piscava. Alheio à confusão do irmão, abocanhava com prazer o sanduíche, os olhos vidrados, enquanto pedaços de tripa de mico escorriam de seus lábios melados de gordura.

O prato de Flávinho enfim chegou. Ele comeu o sanduíche de modo pausado, observando-o com seriedade. Era de uma metodologia acadêmica. Outros 40 minutos depois, o garçom chegou com a conta. Flavinho arregalou os olhos:

“Dez reais por uma porção de maionese? Que é parte do sanduíche?”

“Lamento, mas o senhor afirmou que gostaria de uma porção de maionese. Perguntei para ter certeza.”

“Sim! A que eu tinha direito! Só que fora do sanduíche! Chame o gerente, por favor.”

O gerente se aproximou.

“Que negócio é esse de cobrar por essa maionese verde catarro que vem no sanduíche?”, inquiriu Flavinho.

“Senhor, abaixe o tom de voz. Esse é um restaurante de família. O senhor pediu ou não pediu a maionese?”

Flavinho repetiu a historieta do ovo perdido no prato e da maionese no pote.

“Lamento, senhor. Mas a maionese será cobrada e os senhores irão pagar por ela. Se recusarem, serei obrigado a chamar o Souza.”

“Mas quem é esse Souza, pelo amor de Santo Cristo???”

“Chega de conversa. Os senhores já causaram muito transtorno. Nosso garçom foi visto chorando na cozinha após sua interferência.”

“Interferência?? Isso é jeito de você falar?”

“Interferência em nosso ambiente de paz e prosperidade. E agora os senhores irão pagar caro. Souza, venha cá. Esses delinquentes abusaram da nossa boa vontade. Certifique-se do pagamento da conta e coloque esses vigaristas na rua.”

Vitinho revirou os olhos, incrédulo. Paz e prosperidade??!? Seria uma pegadinha?  Pensou na possibilidade de aquilo ser um ataque sob encomenda, uma retaliação por sua vibrante luta política por mais lustro na careca de José Serra. Foi interrompido quando o corpulento chefe de cozinha o agarrou pela gola.

– Os senhores pediram ou não pediram maionese?

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Souza, Vitinho das Neves e a hora da verdade: “o Sr.pediu ou não pediu maionese?”

Antes que pudesse responder, Vitinho já estava com a cara no chão, o nariz roçando as escavadeiras que partiam dos dedos do pé direito de Souza, enfiado em um velho chinelo de couro.

Com o pé sobre a cabeça de Vitinho, Souza não teve dificuldade em sacudir o diminuto Flavinho e abrir sua carteira. Depois de tirar R$ 80,00 de dentro, deu-lhe um soco na boca do estômago e arremessou os dois para fora do estabelecimento sem muita dificuldade.

“Pagamos 80 pratas por uma conta de 40…”, balbuciou Flavinho, ajoelhado no chão, as mãos sobre a barriga.

“O extra fica por conta dos danos morais”, informou Souza. “Os tempos são outros, a Copa do Mundo está aí e não podemos mais nos dar ao luxo de atender clientes que não sabem como tratar os proprietários. O Brasil é a bola da vez no novo tabuleiro da geopolítica mundial.”

Ainda esbaforido em função do cruzado desferido por Souza, Flavinho virou-se para Vitinho das Neves, que estava deitado no chão, ajeitando a rala cabeleira:

“E agora, você ainda acha que vamos arrebentar na Copa do ano que vem?”

Vitinho sentou na calçada, sacudiu a poeira da roupa e sorriu:

“Claro, meu jovem. E é bom que os hooligans ingleses se comportem ou terão de se ver com o Souza.”

Howie Casey: nos primórdios da beatlemania – 1

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Howie Casey na porta de sua casa em Bournemouth

Quando morei em Londres, entre uma andança e outra atrás de violões e discos de vinil, fiquei muito amigo de uma talentosa cantora de soul, Maureen Anderson. Numa de minhas voltas ao Reino Unido, no começo da década, fui até a casa de Maureen para uma visita. Falando casualmente sobre o quanto eu gostava dos Beatles e de como a música deles havia me contaminado de maneira irremediável, Maureen acabou me revelando que era amiga do “cara que recepcionou os Beatles em Hamburgo”, Howie Casey, até hoje muito amigo de Paul McCartney. Fiquei sem dormir durante alguns dias pensando em como estava a apenas um cara de conhecer o velho Paul. Por isso, tomei coragem e pedi que me apresentasse a Casey. Disse que queria entrevistá-lo.

Creio que em função da amizade entre eles, Howie topou me receber. Por e-mail, avisei o editor da revista Senhor F, Fernando Rosa. Achei que ele gostaria de colocar a entrevista em seu site. Para minha surpresa, ele ficou tão animado que achou melhor mandar a pauta para a revista Bizz. Falou com os editores, que demonstraram interesse. De minha parte, nem esperei confirmação: fui para a casa do saxofonista no dia combinado.

O que se seguiu não foi exatamente o esperado. Primeiro, estava claro que ele não iria me apresentar ao ex-baixista dos Beatles. Obviamente, também havia certa relutância em tocar no próprio assunto ‘Beatles. Sabendo que ele era alguém que conviveu com eles antes de fazerem sucesso, eu esperava que pudesse me contar alguma história bombástica. Mas sendo alguém tão próximo de Paul McCartney, Howie não abaixaria a guarda tão facilmente.

No fim, as coisas se equilibraram um pouco. Com alguma insistência, consegui que ele falasse sobre alguns assuntos que viraram tabu no círculo interno dos Beatles, como a saída de Pete Best e a prisão de Paul no Japão. A entrevista, gigantesca, acabou nunca indo parar nas páginas da Bizz. Para meu orgulho, foi manchete da Senhor F. Eu havia sugerido ao Fernando que desse uma editada e cortasse algumas partes, mas ele se recusou a fazê-lo. Como a entrevista não estava mais na rede, achei por bem recuperá-la, na íntegra, neste blog. Abaixo, temos a introdução e a primeira parte. O resto segue embaixo, em outros três blocos. Boa leitura.

Howie Casey (esquerda) e os Seniors: a caminho de Hamburgo

por Fernando B. Cruz

Hamburgo, 1960. No minúsculo palco de um fumacento e mal iluminado clube de striptease do bairro de Saint Pauli, quatro moleques ingleses se esforçam, desesperadamente, para chamar a atenção de dançarinas e marinheiros embriagados. Para isso, empunham guitarras e cantam, com empenho, músicas estranhas àquele público, números de rock’n’roll, uma espécie de blues mais acelerado. Em resposta, piadas, insultos e até cerveja são atirados ao palco com desdém. Uma demonstração de que os garotos não mereciam crédito. Afinal, quem poderia acreditar que aquele grupo de branquelos britânicos, recém-batizado de Beatles, teria qualquer chance de ao menos gravar um disco?

O saxofonista Howie Casey, do então chamado Derry & The Seniors, grupo conterrâneo e companheiro dos Beatles naqueles tempos de dureza e diversão, reconhece que a primeira vez que os viu, ainda em Liverpool, não achou que fossem bons. Mas não tardou até que mudasse de idéia. “Quando vi os Beatles tocando no Indra (em Hamburgo), percebi que haviam progredido 100% ou mais”, revela. Localizado pela reportagem de Senhor F na cidade onde mora atualmente, em Bournemouth, no sul da Inglaterra, Howie, hoje com 63 anos, foi testemunha ocular e pedra importante na sedimentação dos pilares nos quais o rock se estruturou a partir dos anos 60 na Grã-Bretanha.

Liderando a primeira banda de rock de Liverpool a gravar um disco e praticamente revelando aos alemães o estilo inglês de tocar – os Seniors também foram o primeiro grupo de Liverpool a se apresentar em Hamburgo, lugar que em pouco tempo se tornaria palco de uma vigorosa cena musical – Howie viu e sentiu na pele os efeitos provocados por aquele novo e frenético jeito de se fazer música. “Depois do estouro do rock’n’roll na América, a coisa se espalhou por Liverpool como fogo, mudando tudo radicalmente em menos de um ano. A molecada simplesmente pirou”, relembra.

Em entrevista exclusiva concedida a Senhor F, Howie Casey disseca seu passado e recupera memórias da história do rock, com a qual sua vida se confunde. Músico de talento, o saxofonista relembra o início da carreira em Hamburgo, a explosão da beatlemania e a descoberta e a paixão pelo soul. Revela também o privilégio de colaborar em discos de grupos da estatura do Who (Quadrophenia) e Wings (Band On The Run). Por fim, Casey entrega os  bastidores de histórias (agora) hilárias como a prisão de Paul McCartney no Japão e opina sobre assuntos polêmicos, a exemplo da saída de Pete Best dos Beatles. “Se ele (Best) era tão ruim, por que todas as bandas queriam tê-lo como baterista quando saiu dos Beatles?”. A seguir, a íntegra da entrevista, feita na sala de estar da casa do músico durante uma agradável de tarde de fim do outuno inglês, regada a chá preto e biscoitos.

Parte I:  O rock’n’roll incendeia Liverpool e os Beatles invadem Hamburgo

Capa do disco de Howie Casey & The Seniors

Senhor F – O que levou você  a ser um saxofonista?

Howie Casey – Quando eu era criança, o rock’n’roll ainda não havia acontecido, o que nós tínhamos de mais próximo era o blues e o jazz, do qual por sinal virei fã. A guitarra ainda não tinha a importância que passou a ter com a chegada de Chuck Berry, Bill Halley e Elvis. Um dia, eu e mais dois amigos resolvemos montar uma banda para conseguir algumas garotas. Era o grande lance: ter algum prestígio poderia facilitar nossa vida com as garotas! Quis ser baterista porque tinha um certo status na época, mas aí um dos caras falou “eu sou o batera!” Pensei então que poderia tentar o sax. Mas só passei a tocar mesmo quando servi o exército.

Senhor F – E como foi a transição para o rock’n’roll, quando você montou a sua banda?

Howie Casey – Eu montei a minha banda (Derry & The Seniors) no final de 59. A formação era eu no saxofone, Derry Wilkie nos vocais, Jeff Wallington na bateria, Billy Hughes, guitarra rítmica e vocais, Brian Griffiths na guitarra solo e Phil Whitehead no baixo. O que aconteceu foi que depois do estouro do rock’n’roll na América, a coisa se espalhou por Liverpool como fogo, mudando tudo radicalmente em menos de um ano. Nessa época (entre 59 e 60), a molecada simplesmente pirou, fazendo de tudo para aprender a tocar. Nada mais parecia importar.

Senhor F – A sua banda logo se destacou na cena, conseguindo apresentações e contatos. Como foi o encontro com Allan Williams e os Beatles?

Howie Casey – Allan Williams era o gerente de um café chamado Jacaranda e, mais tarde, do clube Blue Angel. Naquela época era um problema, a polícia costumava invadir os pubs por volta de 11 e meia da noite para verificar se ainda havia gente bebendo depois das últimas ordens. Eles colocavam papel celofane em volta dos copos de cerveja que ainda estivessem cheios depois do horário marcado, enrolavam um elástico em volta e pegavam aquilo para mostrar como “evidência”. Terrível (risos)! Então era complicado porque as pistas de dança fechavam entre 11 e meia e meia-noite, mas o bar fechava antes, 10 e meia. A maioria das pessoas enchia a cara para poder manter o pique até meia-noite. Mas, voltando ao Alan, no Blue Angel havia dois andares. No andar de cima, tinha um pianista e no de baixo, as bandas de rock. Um dia ele falou que conhecia um cara, Larry Parnes, que estava indo para Liverpool procurar bandas de apoio para participar de shows dos cantores dele. Os cantores tinham nomes como Dicky Pride, Duffy Power, era sempre Power, Pride, Gentle (Johnny Gentle, para quem os Beatles abriram shows na desastrosa primeira turnê que fizeram fora de Liverpool, na Escócia, ainda com o nome de Silver Beatles). Esses cantores apareciam na TV e a idéia dele era pegar bandas baratas de Liverpool e levá-las para lugares como Blackpool, não longe de Liverpool, no verão, para tocar. Os grupos tocariam quase de graça para abrir os shows. Ele promoveu uma audição no clube com várias bandas. Estavam lá o Big Three, a gente, Rory Storm, todos querendo o emprego. E havia uma banda nova, uns estudantes de arte que ninguém tinha visto e que conheciam o Allan. Eram o que viria a ser conhecido como os Beatles.

Senhor F – Não eram Beatles ainda, eram?

Howie Casey – Não, eram os Silver Beatles.

Estes moleques petulantes compareceram a uma audição sem baterista

Senhor F – É verdade que quando os viu pela primeira vez você achou que eles não eram bons?

Howie Casey – Bem, todo mundo conhece a história e ficou fácil falar “ah, você disse que os Beatles não eram bons, blá blá blá” (faz voz de quem está debochando). O fato é que… Já contei isso tantas vezes (risos)… Mas vamos colocar a coisa nestes termos, nós (os Seniors) não éramos exatamente profissionais, mas tínhamos mais experiência do que eles e a maioria das bandas. Os Beatles chegaram para a sessão sem baterista, estavam lá John, Paul, George e Stu (Stutcliff, amigo de John e baixista do grupo na época) e acho que eles pediram ao baterista do Big Three, um músico muito bom, um dos melhores de Liverpool, para tocar com eles. Ele topou dar uma força e, verdade seja dita, a presença dele fez com que eles soassem melhor do que eram de fato. A verdade é que eu não reparei muito neles, era apenas mais uma banda, estávamos todos interessados em conseguir o trabalho. Ao final da audição, Alan Williams nos disse que iríamos tocar. Os Beatles também foram chamados para tocar com Johnny Gentle. Mas por alguma razão o “nosso” cantor não estava no show! Então fomos ver Allan Williams, Derry e eu. A história ficou famosa porque ele disse que entramos lá para bater nele, o que é uma grande mentira, era o Allan sendo melodramático (Howie gargalha)! Está nos livros! Disse que eu cheguei com mãos de gigante – gigante, eu! (Howie tem pouco mais de 1,80), o levantei contra a parede e Derry o empurrou pela porta! Tudo conversa. Na importa, algumas pessoas gostam desse tipo de história. Mas fomos lá porque largamos nossos empregos e estávamos desesperados. E ele disse “não se preocupem, nós vamos para Londres”. Ele conseguiu dois carros e alguns dias depois, pegamos nossos amplificadores, o sax e fomos para lá. A idéia era tocar no Two Ice Coffee Bar, em Soho (Londres), um lugar famoso onde bandas tocavam durante o dia e à noite. Chegamos lá e nos sentimos meio estúpidos, tipo “o que vamos fazer lá? Vamos ser descobertos?” Allan conversou com o cara que gerenciava o lugar e ele, meio relutante, disse “ah, tudo bem, vamos deixar eles tocarem, mas não vão nos dar nenhum lucro”. A gente desceu, havia algumas pessoas e uma banda levando um som tipo Shadows, bem vestidos, com os movimentos de guitarra e tudo mais. A gente era só um bando de estúpidos e desajeitados garotos de Liverpool. Pensamos “que droga, eles vão rir na nossa cara”. Mas tocamos e foi tudo bem, Derry fez um bom trabalho, ele era bom para lidar com o público. Na platéia, estava Bruno Koschmider, dono do Kaiserkeller, em Hamburgo, e ele estava procurando por uma banda para substituir a banda de Tony Sheridan, que havia se mudado para um outro clube, o Top Ten. Na banda de Tony Sheridan, havia um cantor negro americano e naturalmente ele (Bruno) queria uma banda inglesa que tivesse um cantor negro para substituí-la. E, claro, lá estávamos nós com um cantor negro, tocando rock’n’roll. Bruno não falava inglês muito bem e a gente não sabia quase nada de alemão, então um cara que trabalhava num restaurante suíço do outro lado da rua e que sabia inglês nos ajudou com o contrato. Fechamos para ganhar 15 libras por semana cada um, o que não era de todo ruim.

Senhor F – Foi o seu primeiro show fora de Liverpool?

Howie Casey – Eu estive na Alemanha, na época em que servi, tocando na banda do exército. Nós fizemos algumas apresentações, mas nada parecido com aquilo. O engraçado de tudo é que a gente não tinha permissão para trabalhar, eles não arranjaram visto. Saímos de Liverpool para a Holanda e de lá pegamos um trem para Hamburgo. Quando o trem parou para o controle de passaporte, eles olharam para os instrumentos, olharam para a nossa cara e perguntaram o que a gente iria fazer lá. Respondemos: “somos turistas, mas trouxemos nossos instrumentos para curtir melhor a viagem”. E eles, “claro, claro. Todo mundo fora do trem (risos)!” A gente saiu, ficamos ali na plataforma, sem dinheiro, cansados da longa viagem e pensando no que fazer. Ligamos para o Kaiserkeller e, como era dia, é claro que estava fechado. Ligamos para o Alan, na Inglaterra, “Alan, eles vão mandar a gente de volta”. E o Alan, “fiquem aí mesmo, vou ligar para a casa do Bruno”. O Bruno tinha suas conexões, sabe como é, o cara era dono de clubes de striptease, não diria que era um mafioso, mas conhecia muita gente, tinha até amigos na polícia. Bruno falou “deixem eles entrar e eu vou conseguir os vistos de trabalho quando chegarem”. Pegamos outro trem e finalmente chegamos em Hamburgo. Mas, no final, nunca conseguimos os vistos! Tocamos em Hamburgo todo aquele tempo sem permissão (risos)!

Senhor F – Nenhuma das bandas que foram para Hamburgo tinha?

Howie Casey – Não. Quando saímos do Kaiserkeller e fomos convidados para o Top Ten, eles nos disseram “vocês precisam conseguir visto, vão à embaixada e acertem tudo”. Mas pelo fato de que estávamos tocando há uns três meses sem visto, não conseguimos. Quando chegamos lá tomaram nossos passaportes e disseram “vocês vão pra casa”. Simplesmente fomos deportados da Alemanha (risos)! Chegamos lá, uau, a primeira banda de rock de Liverpool na Alemanha e acabamos deportados!

Senhor F – Mas vocês voltaram depois.

Howie Casey – Eu voltei, mas não com os Seniors, com o Kingsize Taylor.

Senhor F – Qual era a grande diferença entre a cena de Hamburgo e de Liverpool?

Howie Casey – Bom, a garotada de lá  era bem descolada, tinham estilo, mas musicalmente, não havia muitas bandas de rock’n’roll. Havia uma boa banda que se aproximou da gente, chamada The Bats, mas eu não me lembro de ter visto muitas bandas alemãs. Tenho certeza de que havia músicos, mas não moleques formando bandas. Mais tarde, quando eu voltei para entrar no Kingsize, acho que em 1962, havia muitas outras bandas, como The Rattles. O negócio é que os grupos britânicas tinham a vantagem da língua, nós falamos a mesma língua dos americanos e, bem, eles também falam a mesma língua que nós falamos (risos) e isso fazia a diferença. Os garotos (alemães) sofreram uma forte influência de todas aquelas bandas britânicas, além das americanas, é claro, porque o Star Club costumava apresentar The Everly Brothers, Little Richard, Fats Domino, Jerry Lee Lewis, Ray Charles, Bo Dilley, grandes artistas americanos. E as bandas britânicas abriam os shows.

Senhor F – Quando os Beatles chegaram em Hamburgo, vocês já estavam tocando no Kaiserkeller. Como foi esse início, as jam sessions? O Stu participou de jams com o seu grupo nos intervalos, não?

Howie Casey – Os Beatles chegaram para tocar no Indra, que era um bar muito pequeno, na verdade um clube de streaptease. Havia um palco minúsculo no canto (aponta para o canto da parede da sala da casa, uma área de cerca de dois metros). Junto ao balcão, os alemães chegavam para tomar umas cervejas e ver os shows das dançarinas. E os caras colocaram os pobres dos Beatles naquele canto para tocar (risos).

Senhor F – O que acontecia por lá, além dos shows? Brigas e coisas do tipo? Imagino que não devia ser o tipo de lugar para o qual você levaria a sua mãe (risos)…

Howie Casey – Claro que não (risos)! O lugar existia para o sexo. Toda aquela área, (o bairro) St. Pauli, estava ligada à indústria do sexo. Tudo o que você quisesse, podia conseguir lá.

Senhor F – Isso inclui encrenca também.

Howie Casey – É claro, porque havia gangues em certas áreas e o Bruno Koschmider tinha gente trabalhando para ele no bar, gente que estava pronta para brigar. Ele era um cara poderoso naquela área, podemos dizer. E aqueles gangsters não brigavam com outros (gangsters), eles batiam nos clientes que não pagavam a conta. Era comum você ver gente pobre sentando e o garçom “uma cerveja?”, e antes que você se sentasse havia uma cerveja na mesa! Os preços eram altos e, claro, você tinha que pagar. E na Alemanha não se paga a cada cerveja consumida, a conta vem no final. Então, depois de um tempo, já bêbados, eles não aceitavam pagar porque achavam que era muito mais do que estavam esperando. Aí criavam caso. O próximo passo era (faz gesto de quem está esmurrando alguém) e o cara era chutado por todo o lugar. Do palco dava para ver a confusão. Eu me lembro de uma vez em que estava tocando e vi um cara apanhando de uns quatro ou cinco garçons. Eles o levaram para a gerência eu pensei, “que sacanas!” Tirei meu saxofone, entrei no escritório e eles estavam socando o cara em volta do quarto. Falei para pararem, eu, o “herói do dia”. Aí levei o cara para fora.

Senhor F – Isso foi no Kaiserkeller.

Howie Casey – Foi. E eles simplesmente olharam para mim e riram. Achavam aquilo muito engraçado, porque poderiam ter me enchido de porrada sem o menor problema, se quisessem. Mas aquilo era demais, muita covardia com o cara.

Senhor F – Se você não fosse músico contratado, provavelmente estaria em encrenca.

Howie Casey – Os músicos de Koschmider eram protegidos, essa era uma das leis, éramos intocáveis. Pelo que eu sei, pouquíssimos músicos apanharam. Mas sabendo disso, os músicos se comportavam mal porque estavam garantidos.

Ouça o som dos Seniors: http://www.youtube.com/watch?v=QCbUuBSz6U0

Howie Casey: nos primórdios da beatlemania 2

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Parte II: Stu Sutcliffe, a polêmica saída de Pete Best e o quase estouro dos Seniors

Tempos de dureza: os Beatles em Hamburgo, ainda com Pete Best e Stu Sutcliffe

Senhor F – Fale um pouco mais sobre as jams.

Howie Casey – Os Beatles encerravam mais cedo do que a gente no Indra, por volta de meia-noite ou uma da manhã e a gente ia pelo menos até as duas. Na verdade, dependia muito, se a casa estivesse cheia, tocávamos por mais tempo. Mas eles costumavam aparecer depois do Indra. Aí tocávamos, John, eu, Paul… quem estivesse por perto.

Senhor F – Vocês ficaram chegados?

Howie Casey – Sim, passamos a conhecê-los melhor. Eles eram mais novos, eu já havia servido o exército e eles eram da escola de arte, havia uma diferença de idade. Se estivesse vivo, John faria 60, eu vou fazer 64, então era coisa de três ou quatro anos. George tinha 16, 17 anos, foi até por causa disso que ele voltou pra casa (os Beatles foram deportados de Hamburgo antes de o guitarrista completar 18 anos). O fato é que eu não os conhecia direito em Liverpool, mas acabamos nos dando bem em Hamburgo. Existem umas histórias de que havia rivalidade entre as bandas, o que é uma grande bobagem. Havia competição, mas num nível normal.

Senhor F – Fale-me sobre Stu. O nível musical dele era muito baixo, não?

Howie Casey – A primeira vez que eu o vi tocando (na audição com Larry Parnes) ele realmente virou-se para a parede e ficou meio, hum (faz cara de quem está constrangido)… Mas, ao mesmo tempo, tinha um visual muito legal. Quando foi para Hamburgo, ele mesmo admitiu que estava longe de ser o músico da banda, os músicos eram John, Paul e George. Acho que no fundo ele sempre soube que aquilo não seria para ele… (em 1962, Stuart Sutcliffe morreu de hemorragia cerebral em Hamburgo, ao lado da namorada Astrid Kirchherr, menos de um ano antes de a banda gravar o primeiro compacto).

Senhor F – E quanto a Pete Best? Uma das alegadas razões pelas quais ele foi expulso da banda é que ele não era bom o suficiente.

Howie Casey – Bem, a gente costumava tocar bastante juntos e, pelo que eu sei, Pete era, pelo menos na época, suficientemente bom para tocar com os Beatles. Há muita coisa além dessa história… Ringo era mais espalhafatoso. Mas a verdade é que Pete Best era o beatle mais popular na época, as garotas simplesmente o amavam, ele era bonitão.

Senhor F – Você acha que foi a razão para tirarem ele?

Howie Casey – Quem sabe? Eu não era da banda. Houve rumores.

Senhor F – Ele não era um baterista de jazz, digamos assim, mas segurava.

Howie Casey – Era um baterista. Nosso baterista tocava melhor do que ele, o baterista do Big Three era melhor, havia alguns bateristas melhores do que ele, mas, comparado à  média dos bateristas da época ele era bom. A questão é: se ele era tão ruim, por que todas as bandas queriam tê-lo como baterista quando saiu dos Beatles? Porque ele era um trunfo, e não apenas porque era um baterista razoável, mas porque tinha um grande fã-clube pessoal, as pessoas gostavam dele, especialmente as garotas. Ele fazia um tipo meio James Dean. Mas eu não sei…

Senhor F – Quando você o viu tocando no Kaiserkeller, você o achou razoável.

Howie Casey – Claro. Aliás, a primeira vez que vi os Beatles no Indra, percebi que eles haviam progredido 100% ou mais em relação à época da audição. Estavam muito, muito melhores. Eu pensei “estão muito bons agora”. Voltando ao Stu, a razão pela qual ele tocou na minha banda foi porque Koschmider disse que não queria intervalos nos shows. A gente tocava 45 minutos, tinha um intervalo de 15 minutos, para então tocar mais 45. E assim ia. Eu não sei o que era, mas naquela época, na Alemanha, o público simplesmente sumia nos intervalos. A música parava, ligavam o jukebox e eles começavam a sair. E a gente, “ei, não acabamos, voltem!” Aí quando outras pessoas paravam na porta para dar uma olhada, o cara gritava “toquem, toquem!”, e começávamos a pular e a dançar. Aí eles entravam, “vamos dar uma olhada nesses idiotas ingleses”. O que o Bruno fez então foi dividir a minha banda ao meio para que a música não parasse. Claro que a gente não gostou. “Que? que merda”, foi a nossa reação. Mas não podíamos discutir porque queríamos ficar lá. Ele trouxe então um baterista alemão de jazz e a formação ficou Derry, Stu, eu e o Stan nos teclados. A outra banda era o resto dos Seniors, os dois guitarristas e o baterista. Então quando acabávamos, eles começavam imediatamente. A música não parava e os alemães acabavam ficando.

Senhor F – Vocês foram a primeira banda de Liverpool a assinar contrato com uma gravadora. Como foi isso?

Howie Casey – Bem, voltamos para Liverpool e mudamos a formação. Um outro vocalista se juntou à banda, passamos ter dois cantores, o pianista saiu e arranjamos outro baterista e baixista também.

Senhor F – Uma reforma geral.

Howie Casey – É, mais ou menos. O novo vocalista, Freddie Fowell, era ator, um cara mais velho, que havia participado de alguns filmes quando era jovem, como Violent Playground. Ele era muito bom, muito engraçado. Ele depois mudou o nome para Freddie Starr e hoje é um grande comediante na Grã-Bretanha, uma estrela. Mas voltando, o que aconteceu foi que o empresário dele conseguiu uma audição para ele tentar um contrato com a gravadora Phillips.

Senhor F – Isso foi em 62?

Howie Casey – Não, antes, 61. Aí o Freddie disse que não queria ir sozinho e sugeriu que a banda fosse junto. Fomos para o estúdio da gravadora em Marble Arch, em Londres e o produtor falou “vamos ver o que vocês podem fazer”. Estávamos suando muito, nervosos (risos), mas tocamos e eles disseram “ok, nós assinamos vocês”. Nunca perguntamos quanto ganharíamos, apenas dissemos “claro” (risos). Naquela época o twist estava em alta e o produtor nos disse para escrever material naquele estilo. Topamos, porque twist era apenas uma variação do rock’n’roll … Escrevemos então músicas “fáceis”, voltamos ao estúdio e gravamos ao vivo em uma tarde. Chegamos por volta de meio-dia, gravamos e voltamos para Liverpool no mesmo dia. O próximo passo foi mudar o nome da banda, eles queriam que mudássemos. Ainda era Derry & The Seniors, mas estávamos com dois vocalistas. Não poderia ser Derry, Freddie & The Seniors. Então eles disseram “Howie, você é o líder, a banda deveria se chamar de Howie Casey & The Seniors. “Tudo bem”, respondi. Foi legal, encheu o meu ego, mas os outros dois ficaram numa boa porque não significou preferência por um vocalista em detrimento do outro. O disco saiu e eu me lembro de ter ouvido uma das faixas, Double Twist, na rádio Luxemburg, a rádio pop da época. Era uma música de 100, 200 quilômetros por hora, ninguém podia dançar aquilo (risos)! Mas a sensação era “uau, estamos no caminho”.

Senhor F – A banda se separou no mesmo ano?

Howie Casey – O disco foi gravado em 61 e foi lançado em 62. O grupo acabou naquele ano. Mas antes de acabar, gravamos mais umas faixas. Gravamos uma música chamada Twist At The Top. O disco é chamado assim, mas não tem nenhuma música com esse título.

Senhor F – O que aconteceu? Por que vocês acabaram?

Howie Casey – Por uma série de coisas. A gravadora disse que a gente precisava de uma companhia para agenciar a banda, mas não conhecíamos ninguém em Londres. Arranjaram então um empresário para trabalhar para a banda em Londres. Mas o trabalho foi feito fora da Grande Londres, num lugar que eles chamaram de Twist At The Top. Era no topo de uma grande loja, tinha um clube chamado Room at the top, onde tocamos regularmente por cerca de um mês. Tocamos em outros lugares também no sul e no norte, Lancashire, País de Gales. À essa altura, a banda estava ótima, os shows eram fantásticos com os dois cantores, mas o que aconteceu foi uma coisa pessoal… Minha namorada ficou grávida. Naquela época, se você engravidasse alguém, tinha que casar. E foi o que eu fiz. E como ela estava grávida, não queria que eu ficasse ausente por muito tempo. Fiquei sem opção, precisava arrumar um emprego. Então eu disse ao pessoal que estava saindo do grupo. Os caras me ligavam direto, “Howie, estamos com ofertas para shows”, e eu, “não vai dar, preciso ficar para cuidar da minha mulher e do bebê”. Àquela altura, os Beatles tinham assinado com Brian Epstein para empresariá-los. Brian também estava assinando com o Big Three e Gerry & The Pacemakers. Aí eu recebi um telefone do DJ Bob Wooler: “Howie, Brian quer ter uma conversa com você sobre a banda”.

Senhor F – E o que aconteceu?

Howie Casey – E eu disse “a banda acabou, eu não posso, cara”. Grande idiota! Fui perceber que havia cometido um grande erro um ano depois e foi como eu voltei para a música. Eu estava trabalhando em um pequeno supermercado. Um dia me dei conta: “este sou eu?” Naquela época, todas as bandas que eu conhecia, os Beatles, Gerry, todos estavam tocando no rádio e eu trabalhando num supermercado. “Peraí, isso não está certo”, concluí. Aí recebi uma oferta do Kingsize Taylor para tocar no Starr Club (em Hamburgo) e disse para a minha mulher, “estou com essa oferta, vai ser dinheiro fixo, eu posso te mandar e tudo”. A verdade é que ela não estava nem aí e acabou topando. Voltei ao supermercado e falei “aqui estão as chaves, não virei na segunda, tchau”.

Senhor F – Foi o melhor a ser feito.

Howie Casey – Bem, eu poderia ser poderoso no setor de supermercados agora (risos)! Nunca se sabe! Então entrei para o Kingsize.

Senhor F – E como foi com o Kingsize?

Howie Casey – Nós nos conhecíamos de Liverpool, então foi fácil. Musicalmente era diferente, eles tinham mais cantores, eram quatro ou cinco. Faziam muita harmonia com a voz, o que era ótimo, algo completamente novo para mim. Enquanto os Seniors tinham como estilo Little Richard, eles estavam mais para Chucky Berry, Carl Perkins. Tocamos por um ano no Starr Club e abrimos para o Chucky Berry na primeira turnê que ele fez na Grã-Bretanha, lançamos um single, chamado Stupidity, fizemos apresentações na TV… Ter tocado com Chuck Berry foi uma coisa… Era “uau, estamos tocando com Chuck!” Depois, começamos a ter problemas de dinheiro, não estávamos recebendo o esperado. O dinheiro simplesmente não estava entrando. Na verdade, houve desentendimentos porque tinha gente recebendo mais do que devia e quem estava recebendo mais se recusou a dividir com os outros. Basicamente a banda foi gradualmente se dissolvendo. Àquela altura, era fácil sair de uma banda e entrar em outra.

Howie Casey: nos primórdios da beatlemania – 3

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Parte 3: o reencontro com Paul McCartney, Wings e a prisão do ex-beatle no Japão

Os metais dos Wings (sentido horário): Tony Dorsey, Howie Casey, Thaddeus Richard e Steve Howard

Senhor F – Foi quando você decidiu virar músico de estúdio?

Howie Casey – Bem, não se decide isso de uma hora para hora, foi algo que aconteceu, para a minha sorte. Eu voltei da Alemanha para a Inglaterra, entrei para uma banda de Birmigham e fomos tocar em Paris, Milão, várias cidades na Suíça, França. Já era outra coisa, estávamos tocando soul naquela época, tocamos até 1969, quando minha segunda mulher ficou grávida. Eu sou bom nisso (risos)! Era uma boa banda que nos rendeu muito, mas que acabou também. De volta à Inglaterra, me mudei para Londres e comecei a fazer sessões de estúdio. Aí ficou fácil porque conheci muita gente, as pessoas me viam tocando e faziam os convites.

Senhor F – Como você viu todas aquelas mudanças na segunda metade dos anos 60, a cena mod, a psicodelia, os Beatles fazendo Sgt. Peppers…

Howie Casey – Foram grandes mudanças, mas acho que tudo depende muito do tipo de música que você gosta. Os Beatles começaram a mudar as coisas, com o Sgt. Peppers…

Senhor F – Mas você não se envolveu muito…

Howie Casey – Com os Beatles? Não, havíamos perdido contato. Eu costumava vê-los de tempos em tempos e era sempre “como vai?”, mas não tocávamos mais juntos. Na verdade eu sempre gostei muito da música negra americana, primeiro com o início do rock’n’roll, o blues. Depois, no meio dos anos 60, com o surgimento da soul music, eu pirei. Me identifiquei profundamente com aquilo. Você tem grandes cantores, os metais… Eu gostava do que os Beatles estavam fazendo, gostava dos mods também, mas aquilo se tornou a minha música, o que eu queria tocar. Sempre foi, de uma certa maneira. Todas as bandas que eu tive era um pouco isso, cantores negros, os instrumentos de sopro, minha ex-mulher também era uma cantora de soul… Quando eu voltei para a Inglaterra eu entrei para outra banda, liderada por Roy Young, muito conhecido na cena rock’n’roll dos nos 50. Era a resposta britânica para Little Richard. Até hoje ele canta como Little Richard, toda aquelas notas altas… A banda era fantástica e me abriu muitas portas como músico de estúdio, porque muita gente ia nos assistir, como o produtor Tony Viscontti. Ele me convidou para várias sessões de estúdio. Nos anos 70, Tony estava co-produzindo Band On The Run para os Wings e ele disse ao Paul “conheço um dos saxofonistas que pode tocar no álbum, Howie Casey”.  A reação do Paul foi: “Howie Casey, você está brincando?” Me chamaram na hora.

Senhor F – Então não foi o Paul quem o chamou?

Howie Casey – Não, foi o Tony, porque àquela altura havíamos perdido completamente o contato. É, porque os Beatles eram famosos demais, era outro estilo de vida… Eu estava apenas trabalhando como músico. Toquei em Jet e Band on the Run. Quando acabamos a sessão, Paul disse aos músicos de estúdio: “valeu, pessoal. Howie, você poderia ficar para mais umas sessões?” Respondi que sim, fui até meio blasé, porque já estava acostumado a sessões de estúdio. Gravamos, recebi meu pagamento, 30 libras, e o disco vendeu seis milhões de cópias de cara.

Senhor F – O disco virou um clássico.

Howie Casey – Sim. Depois, decidiram fazer a turnê, quando eu me separei da minha segunda mulher. Me ligaram do escritório do Paul, MPL, perguntando se eu gostaria de participar. E eu “deixe-me ver…” Topei na hora (risos).

Senhor F – Você achava fácil trabalhar com ele?

Howie Casey – Sim. O disco Band On The Run não foi difícil de fazer, musicalmente falando e o Paul é o tipo de músico que sabe o que quer. Ele não escreve partituras, então costumava sentar ao piano e dizer “quero essa melodia para o sax, essa para o trompete…” Em Silly Love Songs, por exemplo, ele fez isso. Ou então ele cantarolava o trecho do solo. É um cara muito talentoso. Mas aceita sugestões dos músicos, é aberto.

Senhor F – E a turnê?

Howie Casey – Fizemos duas, sendo que a segunda terminou num desastre completo.

Senhor F – Como foi isso?

Howie Casey – Bem, o Paul foi preso no Japão. Estávamos todos reunidos no hotel, encontramos outros músicos que tinham ido para as apresentações, acho que um trompetista e outro saxofonista. Ficamos ali, conversando e bebendo, “turnê nova, que bacana!” De repente um dos empresários do escritório entra com uma cara… E todo mundo “e aí, como vai?” E ele, “Paul foi preso (risos)!” E a gente, “claro, claro (mais risos)!”, porque a gente costumava fazer piadas uns com os outros o tempo todo. Pensamos que era mais uma.

Senhor F – Era uma boa piada…

Howie Casey – É, só que não era! Ele havia ido com Linda e as crianças separadamente. A história é que já haviam inclusive cancelado uma turnê japonesa anos antes por causa disso, as autoridades japonesas disseram que ele não podia tocar lá por causa de problemas com drogas. Então na segunda vez houve uma série de articulações com os políticos para fazer a coisa andar. Quando eles chegaram, foram recepcionados e tudo, “seja bem-vindo senhor McCartney, esperamos que os shows sejam um sucesso”. Apenas por formalidade, escolheram uma das malas dele para abrir. E qual era? Justamente a que continha bagulho! E era um saco imenso! Me disseram que, se eles quisessem, poderiam conseguir aquilo no Japão em vez de trazer de fora… Se tivessem olhado outra mala, nada teria acontecido, mas com aquele saco de maconha… Não havia nada que pudessem fazer. E estava na parte de cima da mala, eles poderiam ter colocado nos fundos, mas não. Devem ter fumado e simplesmente colocaram o saco de volta. Um desastre (risos)! Paul assumiu a culpa e foi preso. Todos ficaram apavorados, estavam falando que ele poderia ficar preso por anos, coisas desse tipo. E tudo que nós podíamos fazer era sentar e esperar. Pelo que eu me lembro ele ficou preso uns dez dias. Ficávamos no hotel, bebendo e esperando as novidades. Gente de influência foi acionada para ajudá-lo, como o senador Edward Kennedy – Paul é muito popular, conhece muita gente – e tentar fazer o governo japonês liberá-lo. Na prisão, deram permissão para ele ter um violão e só. Ele ficou com uns japoneses, não havia cadeiras, todos ficavam agachados! A comida era apenas arroz e eles a serviam assim (faz gesto de quem põe um prato no chão). Até que conseguiram que fosse deportado. A polícia o levou e ele foi colocado na classe econômica de um vôo. É claro que quando as portas se fecharam ele foi colocado na primeira classe (risos)! Acho que o episódio o deixou um pouco traumatizado. Você pode imaginar, toda aquela coisa da sociedade japonesa sobre honra…Para eles é muito importante. A verdade é que Paul teve sorte, de uma certa maneira, porque poderia ter ficado preso por muito tempo.

Senhor F – E esse foi o fim da turnê.

Howie Casey – Acho que sim, não me lembro bem. Tínhamos 11 datas no Japão e não fizemos nenhuma. Mas todos os músicos receberam seus cachês.


Howie Casey: nos primórdios da beatlemania – 4

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Parte IV: Rockestra e The Who

À frente da Rockestra, Paul McCartney, ao lado de Pete Townshend; ao fundo, Howie Casey (o segundo, sentido horário)

Senhor F – Você tocou na Rockestra, projeto de Paul McCartney, com John Paul Jones, Pete Townshend, entre outros. Como foi trabalhar com eles, em especial com o Who?

Howie Casey – Foi muito divertido ter participado da Rockestra com todos aqueles músicos… Com o Who, bem, eu toquei algumas músicas do filme Quadrophenia. O engraçado é que nunca vi o filme (risos). Antes disso, eu toquei num álbum solo do baixista John Entwistle, chamado Mad Dog – In Loving Memory Of Rock´n’Roll. Acabei viajando com o Who em algumas turnês pelo Estados Unidos, mas tive que sair da banda porque fui chamado para fazer a segunda turnê mundial do Paul McCartney. É claro que Pete Townshend não ficou muito contente com a notícia (risos).

Senhor F – O que ele disse?

Howie Casey – Eu disse “Olha, Pete, eu vou ter que ir tocar com o Paul, você sabe…” E ele, “sim, claro” (faz cara de irritação)… Falei a ele, “pode deixar, vou colocar um grande saxofonista no meu lugar”. Indiquei o cara que tocou no The Dark Side Of The Moon, do Pink Floyd, Dick Parry. Dick e eu nos conhecíamos de longa data, costumávamos trabalhar bastante juntos. Mas quando acabou a turnê do Paul, eles não me deram o emprego de volta (gargalhadas)!

Senhor F – Você pediu?

Howie Casey – Pedi! E aí Dick falou “É, cara, eles ficaram meio revoltados porque você foi com o McCartney e agora querem que eu fique (risos)!

Senhor F – Pete Townshend não parece ser um cara muito fácil.

Howie Casey – Não, ele é um cara muito bacana, tranqüilo, com quem eu gostei muito de trabalhar. Tem um ótimo senso de humor.

Senhor F – Você tocou com os maiores nomes da história do rock. Que artistas e bandas você gostou mais de trabalhar e se relacionar, pessoal e profissionalmente?

Howie Casey – Poxa, é difícil, toquei com tanta gente… São diferentes períodos da sua vida, você muda de idéia o tempo todo… Eu diria que todos foram bons de uma maneira ou de outra. Nunca gostei de coisas tipo, “Ah, ele é o melhor saxofonista do mundo, o melhor cantor do mundo”. Isso é errado porque não se pode julgar esse tipo de coisa e tudo depende de gosto pessoal.

Senhor F – Concordo. Mas o que você gostou de ter feito, independente de qualidade?

Howie Casey – As coisas que eu adorei fazer: The Seniors, minha primeira banda, porque era tudo muito divertido. Não éramos os maiores músicos do mundo, mas foi ótimo ter tocado com eles; Depois podemos pular para a banda que eu tive quando comecei a tocar soul, The Crew, uma grande banda; A banda de Roy Young era brilhante também; É óbvio que os Wings estão incluídos nesta lista; The Who, porque era algo totalmente diferente, incluindo o perigo de ficar surdo (risos); A banda Paice, Ashton and Lord (conhecida pela sigla PAL), que era fantástica: Jon Lord, músico maravilhoso (mais famoso por seu trabalho no Deep Purple), Ian Paice, grande baterista (idem) e Tony Ashton, um cara divertidíssimo e muito talentoso. Essa foi provavelmente uma das melhores bandas, musicalmente falando. Experimentavam muito e o melhor era que o espaço estava sempre aberto aos outros músicos. Sempre podíamos chegar e dizer “acho que deveríamos fazer desse jeito”. Geralmente eles acatavam numa boa, era ótimo, você sentia que estava contribuindo. Muito legal. Com a banda de Roy Young foi a mesma coisa. Quando me juntei à banda, no começo dos anos 70, comecei a ajudar na composição do material para os álbuns e foi um período muito rico.

Senhor F – Com quem você está tocando hoje?

Howie Casey – Tenho minha própria banda, Howie Casey’s All Stars. São músicos que vivem perto da minha área. Tocamos pela Inglaterra em teatros e casas noturnas e tem sido legal, porque a banda é muito boa. Semana passada, tocamos em Londres, voltando ao Paul MacCartney de novo, num evento relacionado ao Buddy Holly. Como ele (Paul) possui os direitos autorais das músicas de Buddy, todos os anos eles fazem uma noite dedicada a ele. Várias celebridades comparecem ao evento, imprensa, integrantes de bandas… Neste ano eu não sabia que ia tocar. Me ligaram do escritório do Paul e perguntaram se eu poderia trazer o sax. Normalmente eu não levo, apenas vou e me divirto, tomo uns drinques… Mas topei. Tem uma coisa engraçada nessa história. Anunciaram meu nome e subi ao palco para tocar. Ouvi gritos na frente do palco, e havia uma luz enorme na minha cara, de modo que eu não conseguia ver nada. De repente surge essa figura do meio da plateia e vem para a frente do palco, na minha frente, assim (faz um gesto de quem está reverenciando, agachado), Foi aí que eu vi que era o Paul… Quando eu saí do palco, ele continuou atrás de mim, gritando Howie, Howie! Uma figura. Então ele me apresentou a namorada, Heather, que toca saxofone, e me perguntou se eu poderia dar a ela lições de sax (Howie também é professor do instrumento). Ela toca, lê música, mas quer se aprofundar. Acho que vou dar as aulas.

Senhor F – Você toca jazz, participa de jams?

Howie Casey – Sim, participo de jam sessions aqui mesmo. Mas sendo músico, é meio complicado ganhar dinheiro fazendo apenas isso. Mas sempre estou tocando jazz, é uma coisa que está sempre presente. Sempre pratico com discos de jazz, eu toco todos os dias.

Senhor F – Última pergunta: você acompanha a atual cena de rock na Inglaterra, ou mesmo nos Estados Unidos?

Howie Casey – É meio complicado dizer, eu devo confessar que fiquei meio preguiçoso nesse sentido. Acho que chega um ponto na vida em que você não pode saber de tudo o que está acontecendo na cena musical, mas de vez em quando até ouço. Não saio mais por aí comprando discos de tudo que sai. Acho que muito dos músicos mais velhos têm essa tendência de criticar os mais novos porque “não são tão bons como no meu tempo” e coisas do tipo, o que não é justo, na verdade. Não podemos esquecer que há excelentes novos músicos de jazz na Inglaterra, nos Estados Unidos, Brasil…

Senhor F – Você conhece música brasileira?

Howie Casey – Conheço pouco. Gosto de bossa nova, tenho alguns discos do Tom Jobim.

Juventude transviada: reminiscências de Vitinho das Neves – parte II. O rock redime!

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Vitinho das Neves: esbórnia nos tempos de Goiânia?

Vitinho das Neves: esbórnia nos tempos de Goiânia?

O dia era sexta-feira e não havia dúvida: Vitinho das Neves estava seco para tomar uma gelada. O moleque “gostoso”, como o chamava a querida Vera Lu, além de “saber receber” – seja lá o que isso significasse – era bom de copo. Por isso tinha uma sede constante. De modo que fomos bater no Rock’n’Roll, o pé sujo da Asa Norte cujos jovens locais exalavam pura poesia pelos poros. Invariavelmente, presenteavam  os frequentadores com perfomances de air guitar e generosas golfadas de vômito no banheiro. Aquilo era para privilegiados. Mas desta vez, Vitinho se recusou a falar de política e tocar no nome de Mussum ou dos “crápulas do PSDB”. Queria sentir apenas as boas vibrações do rock.


“I wanna rock’n’roll all niiiight”, urrou, ao chegar. “Como nos velhos tempos! A gente era muito louco, não era? Sempre aprontávamos todas. Lembra quando fizemos aquele show em Goiânia? Aquilo faria o pulha do Keith Richards tremer naquelas calças psicodélicas de babaca”, disse, depois de virar um copo de Skol. “Ou o Arnaldo Baptista ficar são. A gente era pura dinamite!” Vitinho havia entrado na Missão Pus depois de ser expulso da consagrada Baita Clitóride anos antes, sob sérias acusações de ter molestado uma barata em um quarto de hotel de Abadiânia. Apesar do revés para a imagem da banda e de Vitinho e do início de um processo legal (isso resultaria na fuga do músico do país, a exemplo do cineasta Roman Polanski. Poucos sabem é que esse foi o verdadeiro motivo de sua ida para a Índia), o episódio nunca foi inteiramente comprovado.

“É, Vitinho, era mesmo”, concordei, meio incerto da veracidade daquelas declarações. Afinal, estivéramos em Goiânia uma vez, para um único show e num moquifo cuja platéia de três pessoas exigia que tocássemos músicas dos Ramones, banda da qual Vitinho não era exatamente fã. Pelas minhas recordações, a cena mais “louca” (para não dizer surreal), de que podia me lembrar foi quando saímos, eu, Vitinho e os dois produtores do show para comprar o jantar do grupo. Eles chegaram em suas motos. Vitinho mostrou-se meio constrangido e hesitou em subir na garupa de uma delas. Afinal, nunca havia andado de moto. Mas logo foi interrompido em sua meditação: “Está esperando o que, garoto?”, perguntou o produtor (e saudoso) Marcão Adrenalina, enquanto acelerava sua máquina. Sem escolha, Vitinho decidiu acabar com aquele tormento.

Foi quando subiu na garupa e agarrou Marcão Adrenalina por trás. Com suas longas madeixas ao vento e um farto bigode bem penteado, Adrenalina, que tinha cara (só a cara) de poucos amigos, não titubeou e virou-se bruscamente: “Que negócio é esse rapaz?”, a ponta do longo bigode encostando nas narinas de Vitinho. “O que?”, retrucou ele, amedrontado. “Essa mão boba em cima de mim!”  “Mas onde vou me segurar?”, balbuciou o jovem guitarrista. “Tem uma grade aí atrás, moleque. Tá me estranhando por causa do cabelo comprido? Comigo não tem dessa veadagem não”.

Uma bomba chamada Ronaldo Lagartixa

De volta ao presente, Vitinho continuava a relembrar as histórias de groupies e outras presepadas imaginárias de que tanto se orgulhava. Falava sem parar e de modo articulado, o que até me fez cogitar se aquilo tudo não teria ocorrido de fato. Aí o louco da história seria eu. Por via das dúvidas, achei melhor não relembrá-lo do episódio da moto. Afinal, como diria meu amigo e colega de banda, Pluto, as lembranças poderiam ser apenas uma “reconstrução histórica” da minha cabeça oca. Embora eu desconfiasse de que esse não era o caso. Fui subitamente puxado dos domínios daquela reminiscência bizarra e bolorenta, pois, à frente do velho televisor, estava uma das figuras mais incompreendidas e, talvez, por isso mesmo, mais temidas do rock brasiliense: Ronaldo Lagartixa.

Lagartixa era vocalista do grupo Finca a Pica e era considerado uma figura no mínimo controversa: durante os shows do grupo, seus discursos, recheados de referências bíblicas à polarização ideológica entre o lustro da careca de Zé Serra e a peruca de Dilma Rousseff, geravam reações adversas, levando uma parte da platéia a tratá-lo quase como um messias (algo que não se via desde Renato Russo). E a outra… Bem, voltemos à narração desta excitante história. Lagartixa posicionou-se em pé, bebericando uma Caracu ao mesmo tempo em que parecia estudar os trejeitos do guitarrista Brian May, do Queen, no clipe da música Save Me. “Bom! O som é meio abaitolado, mas esse sabe tocar guitarra!”, disparou. “Concordam?”, encarou o pessoal nas mesas com os olhos esbugalhados. A maioria apenas assentiu com a cabeça. Ninguém se atreveu a falar.

Ronaldo Lagartixa: ameaça à paz ou telento diplomático à beira da extinção?

Ronaldo Lagartixa: ameaça à paz ou telento diplomático à beira da extinção?

Outros clipes foram se alternando na “programação” e, com eles, ia mudando o humor de Lagartixa. Às vezes emocionava-se com uma banda pela qual nutria simpatia. Mas também ocorria de ficar indignado com a postura, por exemplo, de um grupo como o Poison. Depois de uma sucessão de clipes de bandas farofa, cuja música ganhava o crescente desprezo de Lagartixa, a coisa mudou de figura: veio The Number of the Beast, do Iron Maiden. E Lagartixa perdeu o controle: “AÍ, MOLECADA DE RAIMUNDOS!!! VÃO APRENDER A TOCAR!!!!” E passou a ‘tocar’ nota por nota o solo da música, enquanto encarava os presentes, inebriado em êxtase.

Mas foi na música Smoke on the Water, do Deep Purple, que o caldo entornou: “Blackmore! Esse fazia minha alma pegar fogo!” Vitinho, que fitava Lagartixa com um misto de medo e inveja, talvez pela postura despojada e, sobretudo, verdadeira, do cantor, soltou, quase involuntariamente: “ainda faz, não? Ele não morreu…” Lagartixa pareceu ter sido atingido por um raio. “QUEM DISSE ISSO?”

O homem veio andando em nossa direção, ainda incerto de qual mesa havia partido tamanho atrevimento. No meio do caminho, ouviu uma conversa numa mesa. Eram os cineastas Marcelo Furão e Rene Sampaio. Furão referia-se alegremente ao prêmio de Sampaio pelo curta Sinistro, no Festival de Brasília. Mas sinistro mesmo era o olhar de Lagartixa, que tratou de cortar o papo: “Não quero saber quem é cineasta ou quem levou porra de prêmio. Quero saber quem vai me encarar!!!”

Vitinho decidiu que deveria intervir e acabar com aquela insanidade. “Você quer levantar voo, Lagartixa?”, perguntou ele, tirando coragem não se sabe de onde. “Que conversa é essa, imbecil desmiolado?”, devolveu Lagartixa. Se aproximou e agarrou o guitarrista pela gola, praticamente suspendendo-o do chão.  “Quem vai voar é você, inseto insolente!”

Antes que eu ou qualquer um naquele bar pudesse fazer alguma coisa para evitar que Vitinho iniciasse a formidável experiência de se transformar numa bola de basquete e quicasse pelas mesas, ele gemeu, olhando para o chão: “cacildis…” A expressão endiabrada de Lagartixa mudou:  “o que você disse?” Seus olhos subitamente umedeceram e as mãos afrouxaram a gola de Vitinho. “Onde você ouviu isso?”, inquiriu Lagartixa. “Onde ouvi isso? Eu escrevi sobre isso”, grunhiu Vitinho, sentindo as forças lhe retornando. Seu interlocutor não podia acreditar: “Você é Vital das Neves, autor de “Cacildis”, “Crioulo é a Tua Véia” e “Eu vou me Pirulitar”? “Precisamente”, respondeu Vitinho, o peito agora estufado e os ombros inchando em direção ao teto.

Vitinho foi abraçado por Lagartixa, que agora chorava copiosamente. “Esses formidáveis estudos mudaram minha vida!! Eles são a base de meus discursos nos shows do Finca a Pica! É uma honra conhecê-lo!”, berrou. “Não se apoquente, garoto”, disse Vitinho, esquecendo-se de que era pelo menos 10 anos mais novo do que Lagartixa e de que quase havia levado umas bolachas dele. “Esta é apenas minha parca contribuição para tirar o país deste lastimável estado de subdesenvolvimento”. E emendou um de seus eloquentes discursos pela libertação de Nelson Mandela, que consistia em: “MADIBA!!! MADIBA!!! MADIBA!!!!”. E assim bradou, de cima de uma mesa, para delírio dos locais, que agora o reverenciavam como a um rock star. O único debilóide no recinto que achava que Madiba estava solto há mais de uma década era eu.

Vitinho, após momento de catarse no bar Rock'n'Roll

Vitinho, após momento de catarse no bar Rock'n'Roll

Minhas lucubrações não mais importavam, elas é que não faziam sentido. Pois a lição estava lá nas nossas fuças para quem quisesse ver: Não se pode fugir de si mesmo. Vitinho agora sabia disso. De minha parte, não deixei de observar a fina ironia por trás daquilo. Por meio de seus estudos, Vitinho, um roqueiro de araque e prostrado, influenciara um dos maiores nomes da história da música de Brasília sem se dar conta. E agora encontrava a glória ao unir dois mundos distintos, política e rock’n’roll. O aprendiz era na verdade o mestre. Se estivessem vivos, Renato Russo e Marcão Adrenalina, ele próprio um devoto do modo rock’n’roll de se fazer política, estariam orgulhosos.


Quanto a Ronaldo Lagartixa, este subiu na mesa de Vitinho (que agitava os braços e batia cabeça para a plateia, agora ensandecida), enxugou as lágrimas e fulminou, os braços em volta de Vitinho: “Antes de mais nada, gostaria de agradecer a… TUDO!!!!! VIVA  MUSSUM!!!! VIVA SÉRGIO CABEÇA!!!!(*) VIVA O SENHOR!!!” Os aplausos e gritos da multidão, que, aquela altura, já ocupava a rua inteira, pareciam supersônicos. Já esta pobre testemunha ocular que vos escreve continuava a patinar na própria estupidez. Aquilo me fez lembrar do talentoso poeta Lonely Bob, irmão de Pluto, que um dia vaticinou, em mensagem aos ignorantes: “O caminho é longo”. Mais do que nunca, aquele, definitivamente, era o meu caso. Que a sapiência de Compadre Washington me ilumine.


Nota do moderador: O autor avisou que não se desculpará com os preguiçosos pelo texto longo. “Lições de vida como esta não podem ser resumidas”, me confidenciou.

* Gentilmente cedido pelo amigo Marcelo Araújo


Lula e a “Voz do Brasil 2.0”

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Para nossa nobre imprensa, este homem não tem direito de surfar na blogoesfera

Para parte da nossa nobre imprensa, este homem não tem direito de surfar na blogoesfera

A coisa funciona assim: Se Obama faz, é sinal de que o democrata é um homem moderno e atento ao maravilhoso mundo da tecnologia. Obama mostra que é um progressista ao abrir um estreito canal de comunicação com a população por meio da internet. Mas se é o Lula quem faz… Bem, a coisa muda um pouco de figura. O presidente brasileiro estreou hoje um blog na internet e também colocou um vídeo no YouTube, onde fala rapidamente da proposta do blog (www.blog.planalto.gov.br).

Pois bem. Não se passaram nem 24 horas da estreia do blog (que, ao que parece, caiu pela quantidade de acessos) para nossa democrática imprensa nos abrir os olhos. Ouvi a CBN por apenas cinco minutos. Mas foi o suficiente. Trataram logo de desmascarar o maquiavélico plano conduzido pela assessoria de imprensa do Planalto, capitaneada por Franklin Martins. O que nos Estados Unidos é um canal de comunicação fundamental entre a Casa Branca e o povo americano virou, em nosso encantando país, a “Voz do Brasil 2.0”, um atalho para a propaganda oficial, uma via não de comunicação, mas um instrumento para servir ao “aparelhamento do Estado”… Há um cheiro de desespero dos Mesquita, dos Marinho e dos Frias no ar? Fico me perguntando onde isso vai parar. Depois meus amigos dizem que eu tenho delírio de perseguição, que sou paranóico…

Britpop: o último fenômeno de massas no Reino Unido

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E todos beberam desta garrafa...

A festa nunca termina. E todos beberam desta garrafa...

por Fernando B. Cruz


Damon Albarn, do Blur (e também cérebro por trás dos Gorillaz e do The Good, The Bad and The Queen), é, para muitos, um desgraçado arrogante. É dele a frase, dita em meados dos anos 90: “se ser punk significava se livrar dos hippies, então estou me livrando do grunge”. Mas é como dizia Philippe Seabra: “arrogância é bom, desde que você tenha talento para bancá-la”. Caso de Albarn. Entre 1993 e 1994, Damon ligou as engrenagens que permitiram a entrada em cena de bandas que iriam renovar a estética combalida da música britânica. E isso só se faz com talento. Surgia o Britpop, expressão cunhada pela imprensa britânica e que passou a ser repetida exaustivamente pelos tablóides da ilha e mundo afora.

Pois bem. Rebobinemos a fita. No início dos anos 90, após o desaparecimento dos Stone Roses e das loucuras dos Happy Mondays, a cena inglesa parecia perdida no meio da avalanche grunge de Nirvana e Pearl Jam, que dominava os quatro cantos do planeta, inclusive o Brasil. As bandas da época (Ride, My Bloody Valentine) olhavam para os sapatos e produziam excelente música de guitarras, mas, para o bem ou mal, não estabeleciam conexão com as massas. E ninguém tomava conhecimento do novo som que saía das salas de ensaio e pubs espalhados pela Grã-Bretanha.

O documentário Seven Ages of Rock ilustra bem a situação do rock britânico na época. Por volta de 1993, o Brit Wards, que premiava os destaques do cenário musical britânico, celebrava nomes como os de Annie Lennox, Rod Stewart e Phil Collins, não importando muito o fato de que alguns deles não lançavam nada de novo há anos. O espaço para novas bandas era nenhum. Por isso, o semanário New Musical Express, numa decisão arriscada (e que se mostraria acertada) lançou uma campanha para que o Suede, uma banda nova e obscura, se apresentasse no palco do Brits. Reza a lenda que o lobby, apoiado maciçamente pelos jovens leitores do semanário, fez tal efeito que, no fim, a organização do evento implorou pela presença da banda. A provocativa apresentação do grupo, que tocou a sinistra e explosiva Animal Nitrate, foi considerada por muitos o marco daquilo que estava por vir: uma leva de excitantes bandas novas empunhando guitarras estridentes e cantando sobre jovens e para jovens.

A panela de pressão underground estava fora de controle. Da noite para o dia, bandas desconhecidas tomaram de assalto as paradas de sucesso, disparando um processo que culminaria com a música indie derrubando medalhões da música das paradas e tomando as rédeas do mainstream, semelhante ao dos EUA anos antes.  O sucesso abriu as portas para Suede e Blur, que vieram acompanhados de Oasis, Pulp, Supergrass, Ash e outros grupos. Live Forever, Girls and Boys e Alright, para ficar apenas em exemplos batidos, invadiram as salas de estar.  Na sequência, veio a chamada segunda divisão, com Kula Shaker, Ocean Colour Scene, Menswear, Cast e muitos outros.

Mas nem tudo era festa. A despeito da qualidade inegável das primeiras bandas e de o “movimento” ser responsável pelo volta do orgulho de um “jeito de ser britânico” da juventude, o preço logo seria cobrado. Sem aviso prévio, como que para comprovar o que Damon havia dito, os americanos e seu grunge viraram inimigos mortais na ilha britânica. Todos estavam tomados pela nova febre que tornava, do nada, um grupelho fajuto como Menswear apto a vender mais do que o Nirvana ou se achar melhor do que qualquer grupo americano de qualidade. A campanha nacional orquestrada em parte pela imprensa para celebrar o orgulho britânico estava indo longe demais. A necessidade de rotular e colocar todos no mesmo saco como um produto de supermercado não tardaria a colocar tudo por água abaixo.


Uma das melhores bandas do período, Supergrass Supergrass: consistência e qualidade até os dias de hoje

Além de grupos farsescos conquistarem sua fatia no mercado, arrotando uma qualidade artística que não tinham, políticos também associavam sua imagem ao oba-oba do Cool Britannia, que de cool já não tinha muito. Não à toa, a ascensão de Tony Blair ao cargo de primeiro-ministro, em 1997, foi politicamente articulada com a disseminação da ideia de que o espírito inovador e jovem do britpop também estava presente nas ideias e no modelo de governo dos trabalhistas. Política e rock’n’roll? Algo parecia fora do eixo. E estava. O champanhe não tardaria a azedar. (O livro The Last Party, de John Harris, analisa com precisão o período ao contextualizar a ascensão dos trabalhistas e o super estrelato de Noel Gallagher, Damon Albarn, Brett Anderson e cia).



Em 1997, depois de alguns álbuns considerados clássicos e outros nem tanto, a festa chegava ao fim. O ano serviu de plataforma para o lançamento de discos sombrios e destoantes como Ok Computer, do Radiohead, Ladies and Gentlemen, We Are Floating in Space, do Spiritualized e Urban Hymns, do The Verve. Isso, somado ao fiasco de Be Here Now, o terceiro do Oasis, deixava um gosto de ressaca no ar. A imprensa ainda esperava por um sinal para entender que o doente, o britpop, na verdade já era um moribundo com o pé na cova. Mas a bomba já tinha sido detonada no começo do ano, justamente por Damon Albarn e sua patota como álbum Blur. A capa amarela trazia a foto do que parecia ser um paciente em cima de uma maca num hospital.

Ao flertar com o rock americano de Pavement e asseclas, o grupo deu o adeus definitivo ao britpop e à disputa pela supremacia das paradas, travada com o Oasis. Ironicamente, um dos singles do disco, Song 2 deu ao grupo um inédito primeiro lugar nas paradas americanas, sucesso que obviamente reverberou no Brasil, fiel seguidor do mercado da terra do tio Sam.

A imprensa percebeu a fria em que se metera e tratou de tirar o time de campo. O termo britpop passou a ser motivo de piada nos mesmos tablóides que um ou dois anos antes pautavam repórteres para saber até que horas Damon e Justine Frischmann (do Elastica) haviam enchido a cara em Camden Town. Com a mesma voracidade com que cunhou o termo e encheu os ouvidos de todos com o assunto, a mídia cuspiu os restos mortais da “cena” no prato de leitores pelos quatro cantos, incluídos aí os colunistas musicais brasileiros copiadores da “bíblia” New Musical Express. Ou seja, aí ficou fácil esquecer o que havia de qualidade no tal “movimento” e falar mal dos grupos  e da cena se tornou o esporte da hora. Depois que todo mundo deu sua cheirada numa carreira de Alright e mamou nas tetas de Wonderwall, os moderninhos do post rock foram à forra.

E qual seria então a herança de uma cena que aglutinou talento, arrogância, boas melodias, cheiradores de pó profissionais e política? Bem, há um legado no mínimo interessante. Para começar, a década de 90 diferenciava-se de maneira brutal das cenas dos anos 70 e 80, que quase sempre negavam musicalmente a década anterior. Os grupos mais legais dos anos 90 conseguiram juntar estilos incompatíveis e, portanto, inaceitáveis, por exemplo, para os padrões da cena 80, como o punk e o rock sessentista, o glam e o pós punk, o folk e o dance. A improvável união de punk com anos 60, particularmente, foi o cerne de grandes composições escritas por pelo menos três grupos durante o período embrionário do britpop: Oasis, Blur e Supergrass.

O lirismo urbano do Blur invocava o estilo de crônica pop eternizado por Ray Davies (com suas observações sarcásticas sobre a pitoresca sociedade britânica) e aliava sonoridades sessentistas à crueza pós-punk (Pop Scene, Bank Holiday, Parklife). O talento dos rapazes abria espaço também para belas e assobiáveis melodias (End of a Century, To The End, This is a Low). Isso sem falar em gemas posteriores como Beetlebum e Look Inside America, canções com força suficiente para garantir ao Blur um lugar no panteão de ouro do rock inglês.

Capa de um dos livros de John Harris. O orgulho nacional virou rapidamente motivo de piada

Capa de um dos livros de John Harris sobre o assunto. O orgulho nacional virou rapidamente motivo de piada

Já o Oasis conseguia, em apenas três minutos, associar a arrogância e a sujeira estridente dos Sex Pistols aos vocais arrastados de John Lennon na fase psicodélica dos Beatles (Supersonic, Rock’n’Roll Star, Cigarettes and Alcohol). Noel Gallagher também parecia lapidar uma capacidade ímpar para compor hinos instantâneos, canções beatlescas que jogariam o Oasis nas cercanias do rock de arena (Live Forever, Don’t Look Back in Anger, Champagne Supernova levaram o Oasis a bater recordes de público em estádios). Paul Weller, o padrinho mod da nova cena e ele mesmo protagonista, foi o primeiro a definir Don’t Look Back in Anger como um “clássico absoluto”, antes mesmo de sair o single.


O mesmo Weller, que em 1995 lançou o excelente Stanley Road (tema de futuro post neste espaço) também aprovou o som feito por um trio de Oxford, Supergrass. Segundo o mod father, o grupo tinha bom gosto para compor e os integrantes sabiam tocar seus instrumentos, o que era um luxo naqueles tempos de boy bands. O Supergrass tinha a energia juvenil de um Buzzcooks, riffs de guitarra stonianos e um pé no no glam de Marc Bolan e seu T.Rex (Caught By The Fuzz, Lenny, Mansize Rooster). Não demorou para ganharem as paradas mundiais com a eletrizante Alright.


Glam esse que também serviria de inspiração para a sonoridade do Suede. As letras de Brett Anderson enchiam de brilho e melancolia os decadentes subúrbios londrinos, embaladas nos riffs de guitarra de Bernard Buttler (So Young, Animal Nitrate, Metal Mickey).

Tudo isso, no entanto, não serviria para explicar por si só o fenômeno de massas que foi o Britpop. Sob o aspecto musical, é sempre curioso observar como esses grupos absorveram e se apropriaram tão bem de estilos tão díspares. Do ponto de vista social, entretanto, a chave está no fato de que estes artistas cantaram sua tribo, como pregava o escritor russo Maxim Gorky. Ou seja, captaram os anseios e a urgência dos jovens da época e os transformaram, com uma qualidade autoral às vezes beirando o excepcional, na trilha sonora de toda uma nação. E isso não é pouco.

13 músicas

1-  Blur – Blue Jeans

2-  Oasis – Masterplan

3-  Suede – My Dark Star

4-  Supergrass – Mansize Rooster

5-  Ocean Colour Scene – Riverboat Song

6-  Ash – A Life Less Ordinary

7-  Pulp – Disco 2000

8-  The Verve – History

9-  Elastica – Vaseline

10- Cornershop – People Power

11- Paul Weller _ Changing Man

12- The Charlatans – Just When Your Thinking Things Over

13- Kula Shaker – Hey Dude

Juventude transviada: reminiscências de Vitinho das Neves – parte I

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Vitinho das Neves, um incansável ativista

Vitinho das Neves: mais do que um rostinho bonito, um incansável ativista

Há alguns anos, recebi o telefonema de um grande amigo, Vital das Neves, o velho boa praça e pau-de-cachaça Vitinho. Estava de férias em Brasília. Vitinho vinha se queixando de stress, sentia-se angustiado por não conseguir aglutinar, no conservatório onde era professor, na Índia, os alunos em torno do conteúdo de seu curso de História e Teoria do Mau Humor Francês. Parecia não haver interesse dos indianos pelo assunto e ele não conseguia compreender porque aqueles seres espiritualmente refinados preferiam discutir em classe o peso cultural da traseira de Scarlett Johansson a estudar o valor filosófico de um francês soltando os cachorros em algum desavisado na fila do pão. Além disso, desenvolveram certa resistência aos assuntos da política, outra paixão de Vitinho. “Esses indianos…”, pensava. No fundo, ele temia uma desistência em massa.

Também sentia falta da época divertida em que atirava suas bolinhas de gude nos transeuntes de Nova Délhi e de seus viscerais discursos pela libertação de Nelson Mandela. Vitinho era um orador apaixonado. Seu último grande discurso, no tocante ao líder sul-africano, data de 2005. “Soltem o homem! E vamos logo com isso!!!”, bradava, num articulado e destemido tom revolucionário, para quem estivesse passando.

Contudo, depois desse período seminal, o máximo que conseguiu balbuciar em praça pública foram algumas palavras sobre o insuperável legado de Mussum na política brasileira, apesar de sua avaliação de que sempre haveria resistência a um pensamento tão progressista. Por isso, foi um choque para Vitinho quando descobriu que parlamentares tucanos vinham lendo seus ensaios sobre o rei do mé e preparavam, em segredo, uma investida para a campanha presidencial de 2006, inspirada neles.


“Crioulo é a tua véia” e “Eu vou me pirulitar”, dois estudos redigidos por Vitinho sobre as ideias de Mussum, foram, na verdade, a base do programa de governo do PSDB na campanha daquele ano. Não logrou êxito mas, aparentemente, também não foi descartado. Rumores dão conta de que o governador José Serra pretende fundir o modelo de desenvolvimento contido em “Eu vou me pirulitar” com o mais recente, “Cacildis”, para criar um programa inteiramente novo e virar o jogo em 2010, a despeito da torcida contra de lulistas invejosos.

Vitinho e a política. Como Celso Furtado, este homem enxergava e compreendia o Brasil profundo. Suas ideias são viáveis? Vitinho acredita que sim. Graças a seus estudos sobre o pensador Mussum, um modelo de desenvolvimento socialmente avançado está à disposição da tucanada

Como Celso Furtado, este homem enxergava o Brasil profundo. Suas ideias são viáveis? Vitinho acredita que sim. Graças a seus estudos sobre o pensador Mussum, um modelo de desenvolvimento socialmente avançado foi apropriado pelo tucanato

Apesar de toda a luta e ativismo da política, aliados à vida acadêmica, Vitinho estava desencantado. Portanto, o que importava naquele momento era estar com a família na velha Brasólia, como era chamada a capital por nosso amigo carioca, o biruta profissional Amaretto. Assim, depois de sua ligação, o terreno estava pronto para mais uma noite regada a cerveja, amendoins, flatulências com aroma de ovo e boas, boas risadas. Iria recarregar suas energias. Marcamos no bar Rock’n’Roll, um pé-sujo que agregava a nata dos maiores desocupados de Brasília (hoje, tristemente, desativado). Percebi, no entanto, que as flatulências sairiam mais facilmente do que as risadas.

“E aí, Vitinho, quais as novas?”, perguntei. “Soube que você anda meio desanimado na Índia. Que é isso, rapaz? Levante essa bola!” Ele riu, com a bola, de fato, meio murcha. Aí falou um pouco de sua vida por lá e contou uma ou outra história sobre as novas pesquisas no campo da alta costura. Ele não parava. “A melhor maneira de consertar o mundo é manualmente”, disse, olhando fixamente para mim.

Antes que eu pudesse emitir algum som, eis que surge, da carcomida tela de um televisor, pendurado na parede do bar e amarrado às entranhas de um pré-histórico vídeo cassete, os acordes de Crazy Little Thing Called Love, do Queen. Vitinho deixou escapar um sorriso no canto da boca, enquanto assistia aquelas desgastadas imagens que, de tão borradas, me davam a convicção de que quem segurava o microfone era Saddam Hussein. “Que foi, Vitinho?” Ele agora tinha um olhar enigmático. “Grande música!” “Sim, é mesmo”, concordei, querendo saber o que estava por trás daquilo.

“Isso não está passando aqui à toa”, disse, arregalando os olhos. “Você sabia que Freddie Mercury era indiano?”, perguntou, agarrando meus pulsos com força.  “Calma, rapaz. Não, não sabia desse fato impressionante”, respondi. “Quando Bob Geldof chamou o Queen para tocar no Live Aid (famoso festival que arrecadou milhões de jujubas e caixas de valium para Brian Wilson, em 1985), Freddie resistiu muito à ideia de ser associado à política (postura comum até hoje no meio musical, especialmente no atual rock de Brasília)”.


“Não sabia. Mas e daí?”, perguntei. “Como assim e daí, molóide? Freddie carregava a apatia no sangue. Pense no Maharishi. O mais próximo que chegou do ativismo político foi quando tentou, sem êxito, é verdade, faturar a irmã de Mia Farrow, Prudence. Ou Ravi Shankar: era dele aquela cítara enfiada goela abaixo de Paul McCartney pelo chapa George durante as sessões de Let It Be. Mas tirando isso…”

“Mas e o Gandhi?”, interrompi. “Ah, esse era um animal”, respondeu Vitinho. “O que??? O que é isso, Vitinho?” “Um animal político, você não me deixou completar. E veja onde aquele pacifismo e a Satyagraha (a busca pela verdade), o levaram… Tomou uma azeitona na orelha, e à queima roupa (Nota do moderador: cuidado ao pronunciar ou escrever essa palavra – mesmo com ‘y’ – na internet: você pode ser a próxima vítima do Estado policial. O toque é de Gilmar Mendes, injustiçado e beiçola quando provocado).


Em família. Da esquerda para a direita: dona Heloá, seu Di Paula, Vitinho das Neves e a irmã Lavínia. Embaixo, o irmão Flavinho Ferreira ensaia uma coreografia (no centro), ladeado pelo autor e outra coleguinha de hospício

Em família. Da esquerda para a direita: dona Eloá, seu Di Paula, Vitinho das Neves e a irmã Lavínia. Embaixo, o irmão Flavinho Ferreira ensaia uma coreografia (no centro), ladeado pelo autor e outra coleguinha de hospício

Não respondi. As coisas pareciam não fazer sentido, mas preferi não tecer comentários. Ponderei se Vitinho não estaria perto de um colapso nervoso, uma vez que ainda estava no primeiro copo de cerveja e não dizia coisa com coisa. Perto dele, naquele instante, eu e o irmão, Flavinho Ferreira, éramos o próprio espírito do bom senso, a balança da justiça, a expressão viva do equilíbrio, para usar as palavras de sua bela irmã, Lavínia.

Sem entender patavinas do que estava acontecendo, perguntei assim mesmo: “o que você pretende fazer, Vitinho?” “Só um homem é capaz de me ajudar”, respondeu. “Quem?”, quis saber. “Doc Brown?” Ele ficou impaciente. “Ora, que pergunta. É claro que estou falando de Mussum. Quero revisar e publicar tudo que eu escrevi dele, inclusive o inédito “Quero morrer pretis se eu estiver mentindo”. Acredito que poderei tranformar as bases das articulações políticas, tanto na Índia quanto no Brasil. Inclusive no que diz respeito à libertação de Madiba (Mandela para os chegados). Mas, antes, preciso desvincular meus estudos e a imagem dele daqueles tucanos larápios. Seu legado político não merecia esse aviltamento”. Tomei um susto. “É, Vitinho, até que a sua loucura ainda transpira alguma sanidade…”, pensei, olhando para meus velhos sapatos. Seu Di Paula já tinha motivos para se orgulhar do filho ensaísta.


Nota do moderador: por motivos de viagem e de doença (alô, influenza), este texto, iniciado por João Lêndea na semana passada, só pôde ser disponibilizado hoje, 29 de julho. Trata-se do aniversário de 15 anos da morte do inesquecível Mussum. Uma inacreditável coincidência ou um golpe do destino? …  Não sabemos. A ele, nossa humilde homenagem.


Globo News: canal sugere que novo presidente da UNE é gagá!

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Segundo a Globo News, a UNE carregava as bandeiras do povo brasileiro. E a emissora?

Segundo a Globo News, a UNE carregava as bandeiras do povo brasileiro. E a emissora?

Não dá mesmo para ficar sonolento quando assisto ao canal Globo News. O canal não pára de surpreender com os espasmos de cretinice aguda jorrados diariamente no programa Estúdio I. Desta vez, o show nem ficou por conta das usuais intervenções da notável pensadora e cientista política Lúcia Hippolito, que sempre me fazem pular da poltrona de tanta exaltação. Ela foi coadjuvante.

No programa de ontem (21/07), um dos focos de “análise” do time de descolados da emissora foi a UNE, União Nacional dos Estudantes. O apresentador Eduardo Grillo informou em tom solene que o novo presidente da entidade, Augusto Chagas, é, do alto de seus 27 anos, um “estudante profissional” e que não liga de ser chamado assim nem “para o fato de a entidade receber recursos do governo Lula”. Grillo não se conteve e deixou escorrer o veneno. Com a foto de Augusto com os dois polegares para cima, ouvimos sua voz em off : “Este é Augusto Chagas, esbanjando juventude em seus 27 anos”. A legenda me deixou mais atônito ainda: “NOVO PRESIDENTE, MAS NEM TANTO – UNE elege “estudante profissional”. (Espere aí. Ele é velho? Existe idade certa para ser estudante? Pensei no quanto observar “profissionalismo” deste nível é edificante, ainda mais em tempos desse novo jornalismo sem diploma e sem vergonha…)

Corte para uma foto da bandeira da UNE.  “E esta é a UNE. Mais de 70 anos. Carregando as principais bandeiras do povo brasileiro”. É mesmo? Provavelmente. Mas fiquei meio “grilado” (desculpe o trocadilho, jornalista e apresentador Eduardo) e não consegui evitar algumas perguntas aos meus espantados botões (como diria Mino Carta): Seriam essas bandeiras as da liberdade de expressão e de imprensa ignoradas pela Globo nos anos de chumbo? Seriam as bandeiras dos que levantaram a voz contra um governo assassino e torturador, mas que a Globo convenientemente silenciou na hora de reportar os fatos em troca de benesses e concessões televisivas? Ou seriam as bandeiras de uma imprensa justa e imparcial, as mesmas que evaporaram no jornalismo da emissora quando o povo tomou as ruas do país em 1984, exigindo as Diretas? Talvez fossem ainda as bandeiras do amadurecimento do processo de transição democrática, esquecidas pela Globo quando da edição das imagens do debate presidencial de 1989, fator decisivo para a eleição do “caçador de marajás” Fernando Collor. Fiquei na dúvida.

Grillo apontou o fato de que as imagens de arquivo mostram os estudantes sofrendo violência policial. E disse que a UNE sobreviveu à Era Vargas, aos prédios incendiados e aos estudantes mortos nos anos de chumbo. Ressaltou também que a entidade entrou na Nova República “sem se distanciar do seu papel crítico” e lembrou os  protestos dos caras-pintadas, exigindo o impeachment de Collor, aquele apoiado pela emissora em 1989. E disparou: “O presidente Lula parece que não se lembra. Afinal, não vê muito problema em abraçar e elogiar o antigo rival. E Augusto Chaves, por sua vez, não vê problema em não só apoiar como em receber dinheiro do governo Lula. Como diria Caetano Veloso, alguma coisa está fora de ordem…”

O que está fora de ordem é o jornalismo praticado pela emissora. Rasteiro, tacanho, preconceituoso, parcial e mal-intencionado. Comprometido com interesses políticos muito distantes da prática do ofício. Falando claro: comprometido com a eleição de José Serra em 2010, mesmo com os sinais cada vez mais fortes de que a candidatura do tucano pode naufragar.

Para fechar, vamos ao comentário feito pela ‘cientista política’ Lúcia Hippolito, logo após o Grillo Falante ter se pronunciado: “No meu tempo a gente apanhava da polícia”. Como assim? Uma entidade que representa estudantes tem de sofrer repressão para ter legitimidade? E prosseguiu: “Em 70 anos de história, é a primeira vez que um presidente da República vai a um congresso da UNE”. E isso é ilegal? Arbitrário? Uma entidade de estudantes não pode apoiar governo nenhum? Se a UNE elegesse um presidente da República do PCdoB deveria instantaneamente deixar de apoiar o infeliz depois das eleições? Novamente, indago aos meus botões, que chacoalham de um lado para outro mas parecem não encontrar uma resposta. Com certeza, Lúcia Hippolito a tem.